domingo, 23 de outubro de 2011

O vendedor de passados e o preço da memória na contemporaneidade.

Introdução

O vendedor de passados é uma narrativa em terceira pessoa, em que o real mescla-se ao onírico, na qual o presente se confunde e se projeta no passado, presente este que, na obra do angolano José Eduardo Agualusa, está sendo visto como um período de afirmação de identidades, rupturas com as tradições políticas de uma Angola recém saída de uma guerra civil e, por sua vez, “livre” do domínio estrangeiro. A partir daí, as personagens envolvidas na trama tentam descobrir e entender seus passados como uma questão que possibilita novas descobertas a respeito de si mesmas, independente se aquele passado é – ou não – algo acontecido, vivido ou experenciado.

Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade propõe uma leitura deste momento que ora pode ser lido na sociedade angolana, ao afirmar que “A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” Desta forma), “as identidades modernas estão sendo descentradas, isto é, descoladas ou fragmentadas.” (Hall, 2000. p. 8)

Podemos visualizar de uma forma mais clara tal questão, ao analisarmos as personagens: por um lado, uma osga (lagartixa), narrador onisciente do romance, está em sua terceira encarnação quando se inicia a narrativa e notamos, quando ela vai lembrar-se de suas vidas passadas, essas várias identidades em uma só, e seu aspecto angustiante de “estar-no-mundo”. Por outro, temos Félix, “o vendedor de passados”, um órfão adotado por Fausto, um colecionador de livros antigos, albino, que elabora árvores genealógicas falsas, a fim de reconstruir o passado de seus clientes. Duas personagens contrastantes, ambíguas e com diversas nuances. Nesta perspectiva, a caracterização de ambos vai ao encontro do que Hall chamará de “sujeito pós-moderno”, uma vez que “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente.” (Hall, 2000. p. 13)

Sendo assim, tentaremos analisar como o autor apresenta a questão da memória em seu romance, bem como se processam as rupturas com as tradições políticas e culturais, a partir da leitura e interpretação da carta de José Buchmann a Félix Ventura, quando aquele vai à Nova Iorque em busca do paradeiro de sua suposta mãe, Eva Muller e traz consigo esse novo conceito de sujeito do qual falamos anteriormente.

A questão da memória como recuperação de um passado (in)existente.

Ao elaborar árvores genealógicas para grandes figuras da sociedade angolana mais abastadas, Félix Ventura faz o que poderíamos chamar de “supressão da memória” (TODOROV, 1995. p. 11). Ao reconstruir passados, a personagem dá esperanças a seus clientes de descobrirem informações sobre seus antepassados e reconstruírem, talvez, novas possibilidades de identidades.

Logo que o “estrangeiro” (AGUALUSA, 2004. p. 13) bate à sua porta para pedir-lhe ajuda, ele começa a recuperar um passado que não existe para José Buchmann. Não um passado qualquer, porém um interessante, com personagens e personalidades muito bem delineadas. A cada encontro com o vendedor de passados, o fotógrafo estrangeiro vai revelando essa composição. Sua profissão e o fato de ter uma nacionalidade incomum aos que residem àquela região fazem desta personagem mais controversa, o que lhe confere o aspecto metonímico viável à compreensão das identidades em conflito que se desenham na trama de Agualusa. A ideia do sujeito fragmentado, Assim, passa a dialogar com o fato de ele fotografar guerras, momento em que se confirma a perda dos referencias identitários e, concomitantemente, abre-se com as possíveis descobertas que Félix constrói em seu projeto de recriação de um passado não vivido.

Com isso, ele vai em busca de seus antepassados, pois aquele alegara que sua mãe vivia em Nova Iorque já que era uma escritora de prestígio neste estado norte-americano. A partir daí, o leitor se depara com a carta que Buchmann envia a Félix, contando-lhe a respeito de suas descobertas.

Já no início do texto, Buchmann demonstra um sentimento de nostalgia e melancolia em relação ao ato de escrever cartas e parte para um discurso metalinguístico para fazer-se entender: “Bem sei que não é exactamente uma carta isto que lhe escrevo agora, mas uma mensagem eletrônica. Já ninguém escreve cartas. Eu, sou-lhe sincero, sinto saudades do tempo em que as pessoas se correspondiam, trocando cartas, cartas autênticas, em bom papel, ao qual era possível acrescentar uma gota de perfume, ou juntar folhas secas, penas coloridas, uma madeixa de cabelo.” ( AGUALUSA, 2004. p. 107)

Neste trecho, podemos observar também estetizações, ou melhor, “estetização superficial” (WELSH, 1995. p. 1), quando ele cita a “gota de perfume”, as “folhas secas”, as “penas coloridas” e a “madeixa de cabelo”. Tudo isso se trata de elementos que culminam por “transformar decerto seu campo de atuação num cenário hiperestético” (Idem), ou seja, um embelezamento, uma forma de animação e atribuir emoção àquilo que se quer dizer através de palavras escritas.

Noutro momento da carta, pode-se notar a presença de inúmeras estetizações no discurso do remetente, como neste caso: “Há-de cheirar, talvez, ao medo que por estes dias as pessoas transpiram, respiram, nesta imensa maçã apodrecida. O céu é baixo e escuro. Faço votos, a propósito para que flutuem sobre Luanda idênticas, um cacimbo perpétuo, como convém à sua pele sensível, e que os negócios continuem de vento em popa.” (AGUALUSA, 2004. p. 108)

Em seguida, o autor da carta discorre sobre uma “nostalgia miúda” e relembra tempos passados com um tom saudosista e melancólico. Verificamos aí uma mistura do que Todorov, em Os abusos da memória, irá chamar de “eu arcaico”, “consciente” e “formado na primeira infância” somado ao “eu reflexivo”, formado pela “imagem da imagem que os outros têm de nós” que, por sua vez, formarão um “eu presente”:

“Sofro uma nostalgia miúda desse tempo em que o carteiro nos trazia as cartas a casa, e da alegria, do susto também, com que as recebíamos, com que abríamos, com que as líamos, e do cuidado com que, ao responder, escolhíamos as palavras, medindo-lhes o peso, avaliando a luz e o lume que ia nelas, sentindo-lhe a fragância, porque sabíamos que seriam depois sopesadas, estudadas, cheiradas, saboreadas, e que algumas conseguiriam, eventualmente, escapar à voragem do tempo, para serem relidas muitos anos depois.” ( IDEM)

Podemos verificar, também neste trecho, duas importantes questões evidentes: a memória como uma seleção (“a memória, como tal, é forçosamente uma seleção: alguns momentos de sucesso serão conservados, outros imediata ou progressivamente alijados, e logo esquecidos”), bem como “recuperação do passado” e “sua utilização subsequente.” (TODOROV, 1995. p. 17)

Quando juntas, a supressão e a conservação formam uma memória selecionada. Podemos notar isto, mais evidentemente, quando J. Buchmann recorre à História da África para embasar seus argumentos:

“Os viajantes europeus que ao longo do século XIX atravessaram os sertões de África referiam-se frequentemente, em tom de troça, aos intrincados cumprimentos trocados pelos guias nativos quando, no decurso das suas longas jornadas, se cruzavam, nalguma sombra propícia, com parentes ou conhecidos. O branco assistia, impaciente, até que, transcorridos muitos e demorados minutos de risos, interjeições e bater de palmas, interrompia o guia: - E então, o que disseram os homens – viram Livingstone? – Não disseram nada, não meu chefe explicava o outro: -, só se cumprimentaram.” (AGUALUSA, 2004. p. 108) .

Neste momento, ele recupera o passado, utiliza-o como forma de argumento e o reconta de forma selecionada, mostrando somente a visão do europeu. Logo depois, o fotógrafo faz uma declaração importante A ser salientada, na qual faz uma crítica contundente ao sistema político vigente: “ Acredito que sim, tão carentes de um bom passado andamos nós todos, e em particular aqueles que por essa triste pátria nos desgovernam, governando-se.” (Idem). Tal declaração dialoga, ainda, com o seguinte questionamento de Todorov: “Fica finalmente claro que, em sociedades ocidentais, a memória não ocupa, por regra geral, uma posição dominante. O que dizer então da esfera das condutas públicas, éticas e políticas?” (TODOROV, 1995, p.20)

A carta prossegue e José Buchmann faz uma menção à Ângela Lúcia, uma fotógrafa de nuvens que foi à procura de Félix Ventura, oferecendo-lhe um bom dinheiro para que ele fizesse uma árvore genealógica de seus antepassados, a fim de descobrir suas origens. Ambos começam uma amizade e acabam se envolvendo sentimentalmente e, a partir daí, ele passa a não cobrar mais pelos honorários. Neste momento, Buchmann diz lembrar-se dela com o intuito de esquecer o “tumulto ansioso” das ruas de Nova Iorque.

Poderíamos associar o nome da personagem Ângela, a anjo, luz. Ou seja, quando ele se lembra dela é como ao leitor fosse sugerido um jogo em que os nomes interagissem com os rumos das personagens; Angela, a luz por que o fotógrafo passa a conduzir em seu caminho: “Talvez ela tenha razão e o importante seja dar testemunho não das trevas, como eu tenho feito, sim da luz. (...) O que lhe parece, meu caro Félix, é mais importante dar testemunho da beleza ou denunciar o horror?” (AGUALUSA, 2004. p. 109)

Talvez esta seja uma das passagens mais líricas da narrativa, onde ele inicia sua real intenção por ter escrito a carta ao amigo, ao dizer-lhe que não conseguiu êxito em sua procura. Ao discorrer sobre isso, cujo objetivo é o de encontrar alguma pista sobre sua suposta mãe, Eva Miller – nome que evoca o uma ideia de Paraíso Proibido, referência à “progenitora da humanidade”¹, e transpondo para a realidade que a personagem se encontra, torna-se evidente que a recuperação do seu passado não passa de uma idealização ou uma projeção – em Nova Iorque, mais uma vez J. Buchmann recorre a uma passagem da História na qual também serve como embasamento para seu discurso:

“ Não sei se conhece a Teoria do Mundo Pequeno, também chamada dos Seis Graus de Separação. Em mil novecentos e sessenta e sete um sociólogo americano, Stanley Milgram, da Universidade de Havard, propôs um curioso desafio a trezentas pessoas, residentes nos estados do Kansas e Nebraska. Esperava-se que estas pessoas conseguissem, recorrendo unicamente a informações de amigos e conhecidos, obtidas através de cartas (isto passou-se no tempo em que ainda se trocavam cartas) contactar dois sujeitos, em Boston, dos quais só sabiam o nome e a profissão. Sessenta pessoas aceitaram participar no projecto. Três tiveram êxito. Ao analisar os resultados, Milgram percebeu que, em média, havia somente seus contactos entre o remetente e o destinatário.” (AGUALUSA, 2004. p. 109-110)

Chegando, assim, a conclusão que estava mais próximo dessa mãe do que imaginava.

No entanto, havia algo a ser recuperado. O fotógrafo acaba encontrando a jornalista que assinara uma foto de Eva Miller na revista Vogue. Somente com esta pista, ele descobre o telefone de Maria Duncan, a jornalista, e vai a encontro dela, ao saber seu endereço através De um sobrinho dessa mulher. Ao descrevê-la, ele faz uma observação bastante genérica: “Presumo que lhe pese a solidão, esse mal dos velhos, tão comum nas grandes cidades” (Idem), ou seja, quem reside grandes centros urbanos tenderia a envelhecer sozinhos? Embora a conclusão Buchmann pareça melancólica, ela encontra sentido no contexto em que Maria Duncan emerge na narrativa, e desvela uma angustia contemporânea de quem habita as metrópoles. .

Ao descobrir que Eva teria vivido na Cidade do Cabo antes de morar em Nova Iorque, ele continua sua busca. É notória a definição de sujeito citado anteriormente, proposta por Stuart Hall, neste momento da narrativa. Eva seria um bom exemplo de sujeito fragmentado, ou seja, aquele que passou por um “deslocamento”: “ Aquelas pessoas que sustentam que as identidades modernas estão sendo fragmentadas argumentam que o que aconteceu à concepção de sujeito não foi simplesmente sua desagregação, mas seu deslocamento.” (HALL, 2000. p. 34)

A narrativa dá sua continuidade a partir daí caminhando para um desfecho surpreendente.

Conclusão

Agualusa dispõe de alguns recursos na narrativa que possibilitam um trato melhor da memória, como o fato de colocar uma personagem que “traficava memórias, que vendia o passado” (AGALUSA, 2004. p. 16), Félix Ventura, um alfarrabista, pai de Félix, que também tem sua profissão associada ao passado, uma vez que colecionada obras literárias antigas, um fotógrafo de Guerras, José Buchmann e uma fotógrafa de nuvens, Ângela Lúcia e uma osga, narrando os fatos de forma onisciente, numa associação do real com o sonho, do presente com o passado.

Todos eles representam tipos muito peculiares, porém personagens que se aproximam bastante quando se trata de um conflito entre si e consigo mesmo, por conta de uma necessidade em recuperar uma passado, de redescobrir ou recriar uma identidade ora individual (“sujeito pós-moderno”; Hall, 2000. p. 10) ora uma identidade coletiva (“sujeito social” ;Idem), e assim, podendo deslocar-se de um momento em que a contemporaneidade sugere ociosidade, nostalgia e solidão para um outro de projeções cujas realizações se concretizaram.

A Poesia de Manuel Bandeira: uma leitura crítica de "Poética", "Vou-me embora pra Pasárgada" e "Poema tirado de uma notícia de jornal".

De acordo com Alfredo Bosi, Manuel Bandeira, que fora considerado um dia “poeta menor”, foi um dos melhores poetas de verso livre em português. Podemos verificar tal característica, por exemplo, em Poética que consta na antologia de “Libertinagem”:

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr.diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo aos puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inúmeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres,etc.

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbados

O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

A disposição das palavras no poema é feita de forma livre, ou seja, sem preocupação com a pontuação.

O crítico, porém, faz uma ressalva e atenta o fato de mesmo que sua poesia tenha um caráter “libertário”, Manuel Bandeira não estava imune do “prestígio das velhas poéticas”, o que quer dizer que em sua obra, algumas vezes, nota-se resquícios da Literaturas do século XIX e neoclássica.

Podemos verificar isto no poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, onde há um “eu” lírico angustiado, conturbado, com tendências à evasão no espaço e o escapismo, recorrentes do espírito romântico e uma métrica impecável, conforme os padrões neoclassicistas, com versos em redondilha maior:

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

Já neste poema, verificamos o tom prosaico, com fortes tendências surrealistas, versos livres e brancos (mantendo o que Bosi chama de “homologia entre sentimento e ritmo”) que corporifica a liberdade “vital” e “estética”, apontada pelo crítico também:

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Análise comparativa de "Suspiros Poéticos e Saudades" e “Marília de Dirceu”

“O poeta sem religião e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos procuram aí aplacar a sede.” Gonçalves de Magalhães

A obra “Suspiros Poéticos e Saudades”, escrita por Gonçalves de Magalhães em 1836, foi considerada o marco inicial da poesia romântica no Brasil e, de acordo com Alfredo Bosi, em seu livro História Concisa da Literatura Brasileira, nela o autor “promoveu de modo sistemático os seus ideais românticos (nacionalismo mais religiosidade e o repúdio aos padrões clássicos externos, no caso, ao emprego da mitologia pagã (...)”. E não só tais considerações, mas também muitas outras, verificaremos ao analisar em suas minúcias esta obra importante para a história da Literatura Brasileira e também um dos prenúncios pela incessante busca por uma identidade nacional.

À princípio, ao analisar a obra como um todo, nota-se grandes diferenças, principalmente na segunda parte da obra, em sua estrutura e conteúdo ao confrontar-se com a poesia setecentista, visto que a forma como a natureza é retratada em “Suspiros Poéticos e Saudades” se dá através de personificações e ela interage com o “eu” lírico, tal como nos trecho a seguir em “Adeus à pátria”:

“Oh margens do Janeiro,
Eu me ausento de vós com mágoa e pranto!
Adeus, brilhante céu da terra minha!
Adeus, oh serras que vinguei difícil!
Adeus, sombrias várzeas,
Que vezes passeei meditabundo.”

Eis ali a montanha
Cujos pés beija o mar que em flor se esbarra.
Quantas vezes ali triste, sentado,
Minha alma no infinito se espraiava,
Os olhos vagueando
Sobre este mar, que deve hoje levar-me!

Por outro lado, na poesia árcade, cultua-se basicamente a natureza (bucolismo), que por sua vez serve como pano de fundo para a manifestação do “eu” lírico, tal como no trecho de “Soneto” de Cláudio Manoel da Costa ou mesmo como pano de fundo para cantar o amor à sua musa, como em Marília de Dirceu, de Tomás A. Gonzaga:

“Destes penhascos fez a natureza

O berço, em que nasci! Oh quem cuidara,

Que entre penhas tão duras se criara

Uma alma terna, um peito sem dureza.”

Cláudio M. da Costa

“Aqui vence Amor ao Céu,
Que no dia luminoso
O Céu tem um Sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.”

Tomás A. Gonzaga

Bosi irá denominar a diferença como tratam o tema natureza em ambas escolas literárias da seguinte forma: “A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade, decorativa. Ela significa e revela.”

Além disso, acrescenta: “Com as ficções clássicas foi-se também o paisagismo árcade que cedeu lugar ao pitoresco e à cor local.” Declaração que nos leva crer que a natureza idealizada da poesia do setecentos, deu lugar à natureza mais próxima da realidade brasileira.

Cabe destacar algumas outras considerações do crítico literário importantes para se entender a circunstância que nos leva desconsiderar a análise da primeira parte do poema Suspiros Poéticos e Saudades: “Romântico arrependido, chamou-o com ironia Alcântara Machado, e a expressão é válida, não só por ter Magalhães na velhice ter mudado o estilo juvenil, mas, intrinsecamente, pela natureza de sua obra que de romântico tem apenas alguns temas, mas não a liberdade expressiva, que é o toque da nova cultura”. Ou seja, somente na segunda parte, Saudades, verificamos uma poesia com características mais voltadas para o espírito romântico, objeto de análise deste trabalho.

A primeira parte da obra, por mais que não tenha tantos aspectos relevantes para o estudo em questão, não pode ser desconsiderada visto que verificamos uma alta valorização do “eu” e o subjetivismo e verbos e pronomes na primeira pessoa do discurso, apesar de apresentar um gosto pelo transcendental, pelo vago, principalmente nos primeiros poemas. Quanto ao conteúdo, verificamos não só na primeira parte, mas na obra como um todo um sentimentalismo, subjetivismo, onde a emoção prevalece sobre a razão:

“Quando da noite o véu caliginoso
Do mundo me separa,
E da terra os limites encobrindo,
Vagar deixa minha alma no infinito,
Como um subtil vapor no aéreo espaço,
Uma angélica voz misteriosa
Em torno de mim soa,
Como o som de uma frauta harmoniosa,
Que em sagradas abóbadas reboa.”

Por outro lado, em Marília de Dirceu, de Gonzaga, verificamos uma poesia menos intimista e sentimentalóide, onde a razão prevalece sobre a emoção. O trecho a seguir expressa perfeitamente bem esta questão, onde o eu lírico procura ser um pouco mais comedido:

“De amar, minha Marília, a formosura
Não se podem livrar humanos peitos.
Adoram os heróis; e os mesmos brutos
Aos grilhões de Cupido estão sujeitos.
Quem, Marília, despreza uma beleza,

A luz da razão precisa;
E se tem discurso, pisa

A lei, que lhe ditou a Natureza.”

De acordo com Alfredo Bosi, há uma retomada da mitologia grega em Suspiros Poéticos e Saudades, no trecho de “As ruínas de Roma abaixo, remete àquela que verificamos também em Marília de Dirceu, Lira III, apresentada a seguir:

"Cupido entrou no Céu. O grande Jove
Uma vez se mudou em chuva de ouro;
Outras vezes tomou as várias formas
De General de Tebas, velha, e touro.
O próprio Deus da Guerra desumano

Não viveu de amor ileso;
Quis a Vênus, e foi preso

Na rede, que lhe armou o Deus Vulcano.”

Tomás A. Gonzaga

“Ah! saiamos daqui, que profanado
Foi este monte, habitação dos Grachos,
E do imortal filósofo de Túsculo,
Pelo mais ruim tirano.
Eis seu palácio de ouro;
Nero aqui se entregava aos seus delírios.
Lá palideja ao longe aquela torre
Como um fantasma ao clarear da lua!
Ali ria-se Nero
Com satânicos olhos cintilantes,
Nos quais de Roma a imagem se pintava
Envolta em crepitantes labaredas,
E o povo que expirava emaranhado
Entre as ondas de fogo, e de fumaça.”

Gonçalves de Magalhães

Convém salientar que, na parte “Os suspiros da pátria” transparece o sofrimento do eu lírico por encontrar-se longe dos encantos e maravilhas de sua pátria. Neste momento, podemos verificar um nacionalismo exacerbado, que beira ao ufanismo, pois há uma comparação dela com a figura maternal e o autor procura personificá-la a fim de demonstrar um sofrimento mútuo, ou seja, tanto dele, quanto de sua terra natal. O trecho: “Só uma mãe malfadada/ Que vê seus filhos lutando,/ Nos céus os olhos fitando,/ Assim pode suspirar”, verifica-se tal comparação.

Já em “A infância”, pode-se notar o espírito romântico no tocante fuga da realidade. O eu lírico expressa através de lembranças desta fase da vida, um certo saudosismo e o desejo de evasão.

“Oh minha infância! Oh estação de flores!
De inocente ilusão alva saudosa!
Inda hoje te apresentas
Ante mim, como a imagem deleitosa
De um sonho que encantou-me a fantasia,
Ou como a aurora de um formoso dia.”

(...)

“Oh quão perto a velhice está da infância!
E quão perto da infância a morte adeja!”

Por mais que haja claras diferenças estéticas entre a poesia árcade e a poesia romântica, Antônio Cândido, em “Iniciação à Literatura Brasileira”, considera que há uma “continuidade histórica, pois ambos são momentos solidários na formação de um sistema literário e no desejo de ver uma produção regular funcionando na pátria”. A partir da chegada da Família Real em 1808 e a implantação da Imprensa na capital, propiciou o início de uma independência no que diz respeito à fazer Literatura.

Cândido ainda acrescenta que enquanto o Arcadismo há um predomínio do cosmopolitismo que por sua vez está ligado “às modas literárias da Europa”, o que possibilitou que a população que ele vai denominar como “inculta”, absorvesse tão bem ao modelo artístico. E considera que “o Arcadismo continuou os esboços particulares que vinham do passado local, dando importância relevante tanto ao índio e ao contato de culturas, quanto à descrição da natureza, mesmo que fosse em termos clássicos, como o recurso à metamorfose e às referências pastorais.

Por outro lado, no Romantismo há o que ele vai denominar de “dimensão mais localista”, afim de se afirmar uma identidade e explica que esse é o motivo maior para fazer do índio o herói nacional e o culto do egocentrismo. Mas considera que mesmo assim, a Literatura ainda sofria forte influência européia e que, na verdade, a independência foi uma “substituição de influências”. Ou seja, antes a Literatura feita aqui era inspirada nos moldes portugueses, principalmente camonianos, a partir deste período, a Literatura Francesa passou a exercer forte influência na Literatura Brasileira.

É importante atentar que Antônio Cândido considera Gonçalves Magalhães, o escritor a ser tratado neste trabalho, um poeta medíocre, pois, para ele, Magalhães não passava de um “árcade estrito”. O crítico atenta para uma questão importante no trecho a seguir: “a sua estadia em Paris trouxe a revelação de novas tendências, que abraçou com entusiasmo, vendo nelas sobretudo religião e patriotismo, sendo que a forma mais legítima deste estaria no indianismo, tendência a que consagrou um fastidioso poema épico em dez cantos”.

Verificamos na parte “O cristianismo” de Suspiros Poéticos e Saudades, o tema religião mais evidente, como nos trechos a seguir:

“Oh das Religiões a mais perfeita,
Oh única de Deus, e do homem digna!
Religião plantada no Calvário,
E co'o sangue do Cristo alimentada!
Religião de amor, de paz, de vida!
Tu, que civilizaste a Europa toda,
E primeira na América lançaste
O gérmen da grandeza, a que ela aspira;”

No lede, o poeta também faz uma menção ao mesmo tema: “Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa e a América: e só este bálsamo sagrado devem verter os cânticos dos poetas brasileiros.”

Já o tema patriotismo, verificamos, basicamente, em três partes: “Os suspiros da pátria”, “Invocação à saudade” e “Adeus à pátria”. A seguir, um trecho de “Invocação à saudade” (Quinta e décima estrofe):

“Oh terra do Brasil, terra querida,
Quantas vezes do mísero Africano
Te regaram as lágrimas saudosas?
Quantas vezes teus bosques repetiram
Magoados acentos
Do cântico do escravo,
Ao som dos duros golpes do machado?”

“Oh saudade! Oh saudade!
Pois que em minha alma habitas,
E sem cessar me lembras pais, e Pátria,
Minhas tristes endechas serão tuas,
Saudade, serei teu... Saudade, és minha.”

Considerações finais

Com este trabalho, é possível concluir que na obra inaugural do Romantismo, há um diálogo com a poesia árcade por um lado e por outro, anuncia uma nova estética.

“Lindóia, entregue à dor, desesperada
N'ausência de Cacambo, mal lhe soa
Do caro esposo o último suspiro,
Também suspira, odeia a vida... e morre...”

Neste trecho, por exemplo, em “Invocação à pátria”, verificamos a intertextualidade que se estabelece entre a obra em questão e “O Uraguai” de Basílio da Gama, poema épico árcade.

O diálogo entre essas duas escolas literárias demonstra que não há uma completa cisão entre os dois momentos da Literatura estudados aqui, pois o Romantismo no século XIX, ou qualquer outra escola literária de outro período da história, gradativamente, configurou sua própria identidade.