domingo, 23 de outubro de 2011

Análise comparativa de "Suspiros Poéticos e Saudades" e “Marília de Dirceu”

“O poeta sem religião e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos procuram aí aplacar a sede.” Gonçalves de Magalhães

A obra “Suspiros Poéticos e Saudades”, escrita por Gonçalves de Magalhães em 1836, foi considerada o marco inicial da poesia romântica no Brasil e, de acordo com Alfredo Bosi, em seu livro História Concisa da Literatura Brasileira, nela o autor “promoveu de modo sistemático os seus ideais românticos (nacionalismo mais religiosidade e o repúdio aos padrões clássicos externos, no caso, ao emprego da mitologia pagã (...)”. E não só tais considerações, mas também muitas outras, verificaremos ao analisar em suas minúcias esta obra importante para a história da Literatura Brasileira e também um dos prenúncios pela incessante busca por uma identidade nacional.

À princípio, ao analisar a obra como um todo, nota-se grandes diferenças, principalmente na segunda parte da obra, em sua estrutura e conteúdo ao confrontar-se com a poesia setecentista, visto que a forma como a natureza é retratada em “Suspiros Poéticos e Saudades” se dá através de personificações e ela interage com o “eu” lírico, tal como nos trecho a seguir em “Adeus à pátria”:

“Oh margens do Janeiro,
Eu me ausento de vós com mágoa e pranto!
Adeus, brilhante céu da terra minha!
Adeus, oh serras que vinguei difícil!
Adeus, sombrias várzeas,
Que vezes passeei meditabundo.”

Eis ali a montanha
Cujos pés beija o mar que em flor se esbarra.
Quantas vezes ali triste, sentado,
Minha alma no infinito se espraiava,
Os olhos vagueando
Sobre este mar, que deve hoje levar-me!

Por outro lado, na poesia árcade, cultua-se basicamente a natureza (bucolismo), que por sua vez serve como pano de fundo para a manifestação do “eu” lírico, tal como no trecho de “Soneto” de Cláudio Manoel da Costa ou mesmo como pano de fundo para cantar o amor à sua musa, como em Marília de Dirceu, de Tomás A. Gonzaga:

“Destes penhascos fez a natureza

O berço, em que nasci! Oh quem cuidara,

Que entre penhas tão duras se criara

Uma alma terna, um peito sem dureza.”

Cláudio M. da Costa

“Aqui vence Amor ao Céu,
Que no dia luminoso
O Céu tem um Sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.”

Tomás A. Gonzaga

Bosi irá denominar a diferença como tratam o tema natureza em ambas escolas literárias da seguinte forma: “A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade, decorativa. Ela significa e revela.”

Além disso, acrescenta: “Com as ficções clássicas foi-se também o paisagismo árcade que cedeu lugar ao pitoresco e à cor local.” Declaração que nos leva crer que a natureza idealizada da poesia do setecentos, deu lugar à natureza mais próxima da realidade brasileira.

Cabe destacar algumas outras considerações do crítico literário importantes para se entender a circunstância que nos leva desconsiderar a análise da primeira parte do poema Suspiros Poéticos e Saudades: “Romântico arrependido, chamou-o com ironia Alcântara Machado, e a expressão é válida, não só por ter Magalhães na velhice ter mudado o estilo juvenil, mas, intrinsecamente, pela natureza de sua obra que de romântico tem apenas alguns temas, mas não a liberdade expressiva, que é o toque da nova cultura”. Ou seja, somente na segunda parte, Saudades, verificamos uma poesia com características mais voltadas para o espírito romântico, objeto de análise deste trabalho.

A primeira parte da obra, por mais que não tenha tantos aspectos relevantes para o estudo em questão, não pode ser desconsiderada visto que verificamos uma alta valorização do “eu” e o subjetivismo e verbos e pronomes na primeira pessoa do discurso, apesar de apresentar um gosto pelo transcendental, pelo vago, principalmente nos primeiros poemas. Quanto ao conteúdo, verificamos não só na primeira parte, mas na obra como um todo um sentimentalismo, subjetivismo, onde a emoção prevalece sobre a razão:

“Quando da noite o véu caliginoso
Do mundo me separa,
E da terra os limites encobrindo,
Vagar deixa minha alma no infinito,
Como um subtil vapor no aéreo espaço,
Uma angélica voz misteriosa
Em torno de mim soa,
Como o som de uma frauta harmoniosa,
Que em sagradas abóbadas reboa.”

Por outro lado, em Marília de Dirceu, de Gonzaga, verificamos uma poesia menos intimista e sentimentalóide, onde a razão prevalece sobre a emoção. O trecho a seguir expressa perfeitamente bem esta questão, onde o eu lírico procura ser um pouco mais comedido:

“De amar, minha Marília, a formosura
Não se podem livrar humanos peitos.
Adoram os heróis; e os mesmos brutos
Aos grilhões de Cupido estão sujeitos.
Quem, Marília, despreza uma beleza,

A luz da razão precisa;
E se tem discurso, pisa

A lei, que lhe ditou a Natureza.”

De acordo com Alfredo Bosi, há uma retomada da mitologia grega em Suspiros Poéticos e Saudades, no trecho de “As ruínas de Roma abaixo, remete àquela que verificamos também em Marília de Dirceu, Lira III, apresentada a seguir:

"Cupido entrou no Céu. O grande Jove
Uma vez se mudou em chuva de ouro;
Outras vezes tomou as várias formas
De General de Tebas, velha, e touro.
O próprio Deus da Guerra desumano

Não viveu de amor ileso;
Quis a Vênus, e foi preso

Na rede, que lhe armou o Deus Vulcano.”

Tomás A. Gonzaga

“Ah! saiamos daqui, que profanado
Foi este monte, habitação dos Grachos,
E do imortal filósofo de Túsculo,
Pelo mais ruim tirano.
Eis seu palácio de ouro;
Nero aqui se entregava aos seus delírios.
Lá palideja ao longe aquela torre
Como um fantasma ao clarear da lua!
Ali ria-se Nero
Com satânicos olhos cintilantes,
Nos quais de Roma a imagem se pintava
Envolta em crepitantes labaredas,
E o povo que expirava emaranhado
Entre as ondas de fogo, e de fumaça.”

Gonçalves de Magalhães

Convém salientar que, na parte “Os suspiros da pátria” transparece o sofrimento do eu lírico por encontrar-se longe dos encantos e maravilhas de sua pátria. Neste momento, podemos verificar um nacionalismo exacerbado, que beira ao ufanismo, pois há uma comparação dela com a figura maternal e o autor procura personificá-la a fim de demonstrar um sofrimento mútuo, ou seja, tanto dele, quanto de sua terra natal. O trecho: “Só uma mãe malfadada/ Que vê seus filhos lutando,/ Nos céus os olhos fitando,/ Assim pode suspirar”, verifica-se tal comparação.

Já em “A infância”, pode-se notar o espírito romântico no tocante fuga da realidade. O eu lírico expressa através de lembranças desta fase da vida, um certo saudosismo e o desejo de evasão.

“Oh minha infância! Oh estação de flores!
De inocente ilusão alva saudosa!
Inda hoje te apresentas
Ante mim, como a imagem deleitosa
De um sonho que encantou-me a fantasia,
Ou como a aurora de um formoso dia.”

(...)

“Oh quão perto a velhice está da infância!
E quão perto da infância a morte adeja!”

Por mais que haja claras diferenças estéticas entre a poesia árcade e a poesia romântica, Antônio Cândido, em “Iniciação à Literatura Brasileira”, considera que há uma “continuidade histórica, pois ambos são momentos solidários na formação de um sistema literário e no desejo de ver uma produção regular funcionando na pátria”. A partir da chegada da Família Real em 1808 e a implantação da Imprensa na capital, propiciou o início de uma independência no que diz respeito à fazer Literatura.

Cândido ainda acrescenta que enquanto o Arcadismo há um predomínio do cosmopolitismo que por sua vez está ligado “às modas literárias da Europa”, o que possibilitou que a população que ele vai denominar como “inculta”, absorvesse tão bem ao modelo artístico. E considera que “o Arcadismo continuou os esboços particulares que vinham do passado local, dando importância relevante tanto ao índio e ao contato de culturas, quanto à descrição da natureza, mesmo que fosse em termos clássicos, como o recurso à metamorfose e às referências pastorais.

Por outro lado, no Romantismo há o que ele vai denominar de “dimensão mais localista”, afim de se afirmar uma identidade e explica que esse é o motivo maior para fazer do índio o herói nacional e o culto do egocentrismo. Mas considera que mesmo assim, a Literatura ainda sofria forte influência européia e que, na verdade, a independência foi uma “substituição de influências”. Ou seja, antes a Literatura feita aqui era inspirada nos moldes portugueses, principalmente camonianos, a partir deste período, a Literatura Francesa passou a exercer forte influência na Literatura Brasileira.

É importante atentar que Antônio Cândido considera Gonçalves Magalhães, o escritor a ser tratado neste trabalho, um poeta medíocre, pois, para ele, Magalhães não passava de um “árcade estrito”. O crítico atenta para uma questão importante no trecho a seguir: “a sua estadia em Paris trouxe a revelação de novas tendências, que abraçou com entusiasmo, vendo nelas sobretudo religião e patriotismo, sendo que a forma mais legítima deste estaria no indianismo, tendência a que consagrou um fastidioso poema épico em dez cantos”.

Verificamos na parte “O cristianismo” de Suspiros Poéticos e Saudades, o tema religião mais evidente, como nos trechos a seguir:

“Oh das Religiões a mais perfeita,
Oh única de Deus, e do homem digna!
Religião plantada no Calvário,
E co'o sangue do Cristo alimentada!
Religião de amor, de paz, de vida!
Tu, que civilizaste a Europa toda,
E primeira na América lançaste
O gérmen da grandeza, a que ela aspira;”

No lede, o poeta também faz uma menção ao mesmo tema: “Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa e a América: e só este bálsamo sagrado devem verter os cânticos dos poetas brasileiros.”

Já o tema patriotismo, verificamos, basicamente, em três partes: “Os suspiros da pátria”, “Invocação à saudade” e “Adeus à pátria”. A seguir, um trecho de “Invocação à saudade” (Quinta e décima estrofe):

“Oh terra do Brasil, terra querida,
Quantas vezes do mísero Africano
Te regaram as lágrimas saudosas?
Quantas vezes teus bosques repetiram
Magoados acentos
Do cântico do escravo,
Ao som dos duros golpes do machado?”

“Oh saudade! Oh saudade!
Pois que em minha alma habitas,
E sem cessar me lembras pais, e Pátria,
Minhas tristes endechas serão tuas,
Saudade, serei teu... Saudade, és minha.”

Considerações finais

Com este trabalho, é possível concluir que na obra inaugural do Romantismo, há um diálogo com a poesia árcade por um lado e por outro, anuncia uma nova estética.

“Lindóia, entregue à dor, desesperada
N'ausência de Cacambo, mal lhe soa
Do caro esposo o último suspiro,
Também suspira, odeia a vida... e morre...”

Neste trecho, por exemplo, em “Invocação à pátria”, verificamos a intertextualidade que se estabelece entre a obra em questão e “O Uraguai” de Basílio da Gama, poema épico árcade.

O diálogo entre essas duas escolas literárias demonstra que não há uma completa cisão entre os dois momentos da Literatura estudados aqui, pois o Romantismo no século XIX, ou qualquer outra escola literária de outro período da história, gradativamente, configurou sua própria identidade.

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