De acordo com Alfredo Bosi, Manuel Bandeira, que fora considerado um dia “poeta menor”, foi um dos melhores poetas de verso livre em português. Podemos verificar tal característica, por exemplo, em Poética que consta na antologia de “Libertinagem”:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr.diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo aos puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inúmeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres,etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
A disposição das palavras no poema é feita de forma livre, ou seja, sem preocupação com a pontuação.
O crítico, porém, faz uma ressalva e atenta o fato de mesmo que sua poesia tenha um caráter “libertário”, Manuel Bandeira não estava imune do “prestígio das velhas poéticas”, o que quer dizer que em sua obra, algumas vezes, nota-se resquícios da Literaturas do século XIX e neoclássica.
Podemos verificar isto no poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, onde há um “eu” lírico angustiado, conturbado, com tendências à evasão no espaço e o escapismo, recorrentes do espírito romântico e uma métrica impecável, conforme os padrões neoclassicistas, com versos em redondilha maior:
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Já neste poema, verificamos o tom prosaico, com fortes tendências surrealistas, versos livres e brancos (mantendo o que Bosi chama de “homologia entre sentimento e ritmo”) que corporifica a liberdade “vital” e “estética”, apontada pelo crítico também:
Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
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