domingo, 23 de outubro de 2011

O vendedor de passados e o preço da memória na contemporaneidade.

Introdução

O vendedor de passados é uma narrativa em terceira pessoa, em que o real mescla-se ao onírico, na qual o presente se confunde e se projeta no passado, presente este que, na obra do angolano José Eduardo Agualusa, está sendo visto como um período de afirmação de identidades, rupturas com as tradições políticas de uma Angola recém saída de uma guerra civil e, por sua vez, “livre” do domínio estrangeiro. A partir daí, as personagens envolvidas na trama tentam descobrir e entender seus passados como uma questão que possibilita novas descobertas a respeito de si mesmas, independente se aquele passado é – ou não – algo acontecido, vivido ou experenciado.

Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade propõe uma leitura deste momento que ora pode ser lido na sociedade angolana, ao afirmar que “A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” Desta forma), “as identidades modernas estão sendo descentradas, isto é, descoladas ou fragmentadas.” (Hall, 2000. p. 8)

Podemos visualizar de uma forma mais clara tal questão, ao analisarmos as personagens: por um lado, uma osga (lagartixa), narrador onisciente do romance, está em sua terceira encarnação quando se inicia a narrativa e notamos, quando ela vai lembrar-se de suas vidas passadas, essas várias identidades em uma só, e seu aspecto angustiante de “estar-no-mundo”. Por outro, temos Félix, “o vendedor de passados”, um órfão adotado por Fausto, um colecionador de livros antigos, albino, que elabora árvores genealógicas falsas, a fim de reconstruir o passado de seus clientes. Duas personagens contrastantes, ambíguas e com diversas nuances. Nesta perspectiva, a caracterização de ambos vai ao encontro do que Hall chamará de “sujeito pós-moderno”, uma vez que “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente.” (Hall, 2000. p. 13)

Sendo assim, tentaremos analisar como o autor apresenta a questão da memória em seu romance, bem como se processam as rupturas com as tradições políticas e culturais, a partir da leitura e interpretação da carta de José Buchmann a Félix Ventura, quando aquele vai à Nova Iorque em busca do paradeiro de sua suposta mãe, Eva Muller e traz consigo esse novo conceito de sujeito do qual falamos anteriormente.

A questão da memória como recuperação de um passado (in)existente.

Ao elaborar árvores genealógicas para grandes figuras da sociedade angolana mais abastadas, Félix Ventura faz o que poderíamos chamar de “supressão da memória” (TODOROV, 1995. p. 11). Ao reconstruir passados, a personagem dá esperanças a seus clientes de descobrirem informações sobre seus antepassados e reconstruírem, talvez, novas possibilidades de identidades.

Logo que o “estrangeiro” (AGUALUSA, 2004. p. 13) bate à sua porta para pedir-lhe ajuda, ele começa a recuperar um passado que não existe para José Buchmann. Não um passado qualquer, porém um interessante, com personagens e personalidades muito bem delineadas. A cada encontro com o vendedor de passados, o fotógrafo estrangeiro vai revelando essa composição. Sua profissão e o fato de ter uma nacionalidade incomum aos que residem àquela região fazem desta personagem mais controversa, o que lhe confere o aspecto metonímico viável à compreensão das identidades em conflito que se desenham na trama de Agualusa. A ideia do sujeito fragmentado, Assim, passa a dialogar com o fato de ele fotografar guerras, momento em que se confirma a perda dos referencias identitários e, concomitantemente, abre-se com as possíveis descobertas que Félix constrói em seu projeto de recriação de um passado não vivido.

Com isso, ele vai em busca de seus antepassados, pois aquele alegara que sua mãe vivia em Nova Iorque já que era uma escritora de prestígio neste estado norte-americano. A partir daí, o leitor se depara com a carta que Buchmann envia a Félix, contando-lhe a respeito de suas descobertas.

Já no início do texto, Buchmann demonstra um sentimento de nostalgia e melancolia em relação ao ato de escrever cartas e parte para um discurso metalinguístico para fazer-se entender: “Bem sei que não é exactamente uma carta isto que lhe escrevo agora, mas uma mensagem eletrônica. Já ninguém escreve cartas. Eu, sou-lhe sincero, sinto saudades do tempo em que as pessoas se correspondiam, trocando cartas, cartas autênticas, em bom papel, ao qual era possível acrescentar uma gota de perfume, ou juntar folhas secas, penas coloridas, uma madeixa de cabelo.” ( AGUALUSA, 2004. p. 107)

Neste trecho, podemos observar também estetizações, ou melhor, “estetização superficial” (WELSH, 1995. p. 1), quando ele cita a “gota de perfume”, as “folhas secas”, as “penas coloridas” e a “madeixa de cabelo”. Tudo isso se trata de elementos que culminam por “transformar decerto seu campo de atuação num cenário hiperestético” (Idem), ou seja, um embelezamento, uma forma de animação e atribuir emoção àquilo que se quer dizer através de palavras escritas.

Noutro momento da carta, pode-se notar a presença de inúmeras estetizações no discurso do remetente, como neste caso: “Há-de cheirar, talvez, ao medo que por estes dias as pessoas transpiram, respiram, nesta imensa maçã apodrecida. O céu é baixo e escuro. Faço votos, a propósito para que flutuem sobre Luanda idênticas, um cacimbo perpétuo, como convém à sua pele sensível, e que os negócios continuem de vento em popa.” (AGUALUSA, 2004. p. 108)

Em seguida, o autor da carta discorre sobre uma “nostalgia miúda” e relembra tempos passados com um tom saudosista e melancólico. Verificamos aí uma mistura do que Todorov, em Os abusos da memória, irá chamar de “eu arcaico”, “consciente” e “formado na primeira infância” somado ao “eu reflexivo”, formado pela “imagem da imagem que os outros têm de nós” que, por sua vez, formarão um “eu presente”:

“Sofro uma nostalgia miúda desse tempo em que o carteiro nos trazia as cartas a casa, e da alegria, do susto também, com que as recebíamos, com que abríamos, com que as líamos, e do cuidado com que, ao responder, escolhíamos as palavras, medindo-lhes o peso, avaliando a luz e o lume que ia nelas, sentindo-lhe a fragância, porque sabíamos que seriam depois sopesadas, estudadas, cheiradas, saboreadas, e que algumas conseguiriam, eventualmente, escapar à voragem do tempo, para serem relidas muitos anos depois.” ( IDEM)

Podemos verificar, também neste trecho, duas importantes questões evidentes: a memória como uma seleção (“a memória, como tal, é forçosamente uma seleção: alguns momentos de sucesso serão conservados, outros imediata ou progressivamente alijados, e logo esquecidos”), bem como “recuperação do passado” e “sua utilização subsequente.” (TODOROV, 1995. p. 17)

Quando juntas, a supressão e a conservação formam uma memória selecionada. Podemos notar isto, mais evidentemente, quando J. Buchmann recorre à História da África para embasar seus argumentos:

“Os viajantes europeus que ao longo do século XIX atravessaram os sertões de África referiam-se frequentemente, em tom de troça, aos intrincados cumprimentos trocados pelos guias nativos quando, no decurso das suas longas jornadas, se cruzavam, nalguma sombra propícia, com parentes ou conhecidos. O branco assistia, impaciente, até que, transcorridos muitos e demorados minutos de risos, interjeições e bater de palmas, interrompia o guia: - E então, o que disseram os homens – viram Livingstone? – Não disseram nada, não meu chefe explicava o outro: -, só se cumprimentaram.” (AGUALUSA, 2004. p. 108) .

Neste momento, ele recupera o passado, utiliza-o como forma de argumento e o reconta de forma selecionada, mostrando somente a visão do europeu. Logo depois, o fotógrafo faz uma declaração importante A ser salientada, na qual faz uma crítica contundente ao sistema político vigente: “ Acredito que sim, tão carentes de um bom passado andamos nós todos, e em particular aqueles que por essa triste pátria nos desgovernam, governando-se.” (Idem). Tal declaração dialoga, ainda, com o seguinte questionamento de Todorov: “Fica finalmente claro que, em sociedades ocidentais, a memória não ocupa, por regra geral, uma posição dominante. O que dizer então da esfera das condutas públicas, éticas e políticas?” (TODOROV, 1995, p.20)

A carta prossegue e José Buchmann faz uma menção à Ângela Lúcia, uma fotógrafa de nuvens que foi à procura de Félix Ventura, oferecendo-lhe um bom dinheiro para que ele fizesse uma árvore genealógica de seus antepassados, a fim de descobrir suas origens. Ambos começam uma amizade e acabam se envolvendo sentimentalmente e, a partir daí, ele passa a não cobrar mais pelos honorários. Neste momento, Buchmann diz lembrar-se dela com o intuito de esquecer o “tumulto ansioso” das ruas de Nova Iorque.

Poderíamos associar o nome da personagem Ângela, a anjo, luz. Ou seja, quando ele se lembra dela é como ao leitor fosse sugerido um jogo em que os nomes interagissem com os rumos das personagens; Angela, a luz por que o fotógrafo passa a conduzir em seu caminho: “Talvez ela tenha razão e o importante seja dar testemunho não das trevas, como eu tenho feito, sim da luz. (...) O que lhe parece, meu caro Félix, é mais importante dar testemunho da beleza ou denunciar o horror?” (AGUALUSA, 2004. p. 109)

Talvez esta seja uma das passagens mais líricas da narrativa, onde ele inicia sua real intenção por ter escrito a carta ao amigo, ao dizer-lhe que não conseguiu êxito em sua procura. Ao discorrer sobre isso, cujo objetivo é o de encontrar alguma pista sobre sua suposta mãe, Eva Miller – nome que evoca o uma ideia de Paraíso Proibido, referência à “progenitora da humanidade”¹, e transpondo para a realidade que a personagem se encontra, torna-se evidente que a recuperação do seu passado não passa de uma idealização ou uma projeção – em Nova Iorque, mais uma vez J. Buchmann recorre a uma passagem da História na qual também serve como embasamento para seu discurso:

“ Não sei se conhece a Teoria do Mundo Pequeno, também chamada dos Seis Graus de Separação. Em mil novecentos e sessenta e sete um sociólogo americano, Stanley Milgram, da Universidade de Havard, propôs um curioso desafio a trezentas pessoas, residentes nos estados do Kansas e Nebraska. Esperava-se que estas pessoas conseguissem, recorrendo unicamente a informações de amigos e conhecidos, obtidas através de cartas (isto passou-se no tempo em que ainda se trocavam cartas) contactar dois sujeitos, em Boston, dos quais só sabiam o nome e a profissão. Sessenta pessoas aceitaram participar no projecto. Três tiveram êxito. Ao analisar os resultados, Milgram percebeu que, em média, havia somente seus contactos entre o remetente e o destinatário.” (AGUALUSA, 2004. p. 109-110)

Chegando, assim, a conclusão que estava mais próximo dessa mãe do que imaginava.

No entanto, havia algo a ser recuperado. O fotógrafo acaba encontrando a jornalista que assinara uma foto de Eva Miller na revista Vogue. Somente com esta pista, ele descobre o telefone de Maria Duncan, a jornalista, e vai a encontro dela, ao saber seu endereço através De um sobrinho dessa mulher. Ao descrevê-la, ele faz uma observação bastante genérica: “Presumo que lhe pese a solidão, esse mal dos velhos, tão comum nas grandes cidades” (Idem), ou seja, quem reside grandes centros urbanos tenderia a envelhecer sozinhos? Embora a conclusão Buchmann pareça melancólica, ela encontra sentido no contexto em que Maria Duncan emerge na narrativa, e desvela uma angustia contemporânea de quem habita as metrópoles. .

Ao descobrir que Eva teria vivido na Cidade do Cabo antes de morar em Nova Iorque, ele continua sua busca. É notória a definição de sujeito citado anteriormente, proposta por Stuart Hall, neste momento da narrativa. Eva seria um bom exemplo de sujeito fragmentado, ou seja, aquele que passou por um “deslocamento”: “ Aquelas pessoas que sustentam que as identidades modernas estão sendo fragmentadas argumentam que o que aconteceu à concepção de sujeito não foi simplesmente sua desagregação, mas seu deslocamento.” (HALL, 2000. p. 34)

A narrativa dá sua continuidade a partir daí caminhando para um desfecho surpreendente.

Conclusão

Agualusa dispõe de alguns recursos na narrativa que possibilitam um trato melhor da memória, como o fato de colocar uma personagem que “traficava memórias, que vendia o passado” (AGALUSA, 2004. p. 16), Félix Ventura, um alfarrabista, pai de Félix, que também tem sua profissão associada ao passado, uma vez que colecionada obras literárias antigas, um fotógrafo de Guerras, José Buchmann e uma fotógrafa de nuvens, Ângela Lúcia e uma osga, narrando os fatos de forma onisciente, numa associação do real com o sonho, do presente com o passado.

Todos eles representam tipos muito peculiares, porém personagens que se aproximam bastante quando se trata de um conflito entre si e consigo mesmo, por conta de uma necessidade em recuperar uma passado, de redescobrir ou recriar uma identidade ora individual (“sujeito pós-moderno”; Hall, 2000. p. 10) ora uma identidade coletiva (“sujeito social” ;Idem), e assim, podendo deslocar-se de um momento em que a contemporaneidade sugere ociosidade, nostalgia e solidão para um outro de projeções cujas realizações se concretizaram.

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