domingo, 23 de outubro de 2011

Um diálogo entre os padres jesuítas José de Anchieta e Antônio Vieira

Introdução

São onze anos que separam a morte de um e o nascimento de outro: Padre José de Anchieta(1533-1597) faleceu em 09 de Junho de 1597, enquanto Padre Antônio Vieira(1608-1697) nasceu em 6 de fevereiro de 1608.

Eles viveram em séculos diferentes, mas seus ideais e o serviço a Deus se mantiveram praticamente intactos durante dois séculos de turbulência no mundo ocidental: Contrarreforma e o Renascimento nas artes e ciências.

Aquela, por sua vez, propiciou a criação da Companhia de Jesus, por Inácio Loyola, em 1549, e as missões jesuíticas no Brasil que possibilitaram a penetração dos padres jesuítas Anchieta e Vieira na formação do Brasil Colônia.

Além do fato de ambos terem feito parte daquela ordem, destacaremos outros pontos que possibilitaram o estudo da comparação em alguns aspectos de suas obras. Embora situadas e enquadradas em períodos históricos distintos e seus estilos serem bastante diferentes, podemos enxergar que eles se aproximam no trato com o outro (o indígena, principalmente), na preocupação e o envolvimento com uma causa maior que é a catequese.

Como diria Pero Vaz de Caminha no documento epistolar A Carta do descobrimento: “parece que o maior fruto que dela se pode tirar é salvar essa gente”, numa clara intenção de resgatar os valores cristãos, impondo ao indígena sua cultura e sua religião.

É dentro deste contexto de recuperação de valores cristãos medievais é que vai emergir essas duas figuras emblemáticas na compressão de um Brasil recém descoberto, e posteriormente colonizado e Portugal em crise após da união com a Espanha e as conseqüentes invasões holandesas no Brasil.

Aculturar também é sinônimo de traduzir

Padre José de Anchieta nasceu na Ilha de Tenerife, nas Ilhas Canárias que pertenciam à Espanha, no di 19 de Março de 1534 (dia de São José, por isso foi batizado com o nome do santo). Ingressou na Companhia de Jesus em 1551, quando tinha apenas 17 anos e em 1553, ano em que já era noviço, chega ao Brasil com a expedição de Duarte Góis, juntamente com Manuel da Nóbrega, também jesuíta que o iniciou.

Dedicou sua vida à companhia e no Brasil fundou o primeiro colégio do Brasil em São Paulo de Piratininga em 1554. Tal dedicação pode ser enxergada na catequização do indígena e na crença de que este poderia “ser salvo” através do conhecimento da palavra de Deus. Alfredo Bosi, em Diálética da Colonização(1995), vai destacar como se deu esta questão do ensino do catolicismo aos povos indígenas:

“ Com o fim de converter o nativo Anchieta engenhou uma poesia e um teatro cujo correlato imaginário é um mundo maniqueísta cindido entre forças em perpétua luta: Tupã-Deus, com sua constelação familiar de anjos e santos, e linhaga- Demônio, com a sua corte de espíritos malévolos que se fazem presentes nas cerimônias tupis” (BOSI. 1995. P. 67-68)

Anos depois na Literatura com Pe. Antônio Vieira (nasceu em Lisboa, Portugal, porém veio ao Brasil com sua família aos 06 anos de idade. Ingressou na Companhia de Jesus com apenas 15 anos, em 1623 dedicando-se a escrever sermões, afinal “os sermões eram seu ofício, sua vida.”), verificamos que essa dicotomia bem x mal ainda perdura: “A ação heróica valoriza comportamentos que explicitam seu conteúdo ético, a inteireza de caráter das personagens, facilitando para o receptor da mensagem a separação pedagógica entre bem e mal. Tudo pode ser explicado, tudo fica claro no dualismo vítima - algoz.”

Podemos verificar na obra de Anchieta tal dicotomia no auto Na festa de São Lourenço, conforme Bosi irá apontar: “Era preciso circunscrever o lugar do Mal, cercá-lo, vencê-lo e sotopô-lo às hostes do Bem.” Na peça, enxergamos isso da seguinte forma:

Molestam-me os virtuosos

irritando-me muitíssimo

os seus novos hábitos

Quem os terá trazido

para prejudicar a nossa terra?

Eu somente

nesta aldeia estou

como seu guardião,

fazendo-a seguir as minhas leis

Daqui vou longe

visitar outras aldeias.

Quem sou eu?

Eu sou conceituado,

sou o diabão assado,

Guaixará chamado,

por aí afamado.

Meu sistema é agradável.

Não quero que seja constrangido,

nem abolido.

Pretendo

alvoroçar as tabas todas.

Boa cousa é beber

até vomitar cauim.

Isto é apreciadíssimo.

Isso se recomenda,

Isso é admirável!

São aqui conceituados os moçaracas

beberrões

Quem bebe até esgotar-se o cauim,

esse é valente,

ansioso por lutar.

É bom dançar,

adornar-se, tingir-se de vermelho,

empenar o corpo, pintar as pernas,

fazer-se negro, fumar,

curandeirar...

De enfurecer-se, andar matando,

comer um ao outro, prender tapuias,

amancebar-se, ser desonesto,

espião adúltero,

não quero que o gentio deixe.

Para isso

convivo com os índios,

induzindo-os a creditarem em mim.

Vêm inutilmente afastar-me

os tais agora,

apregoando a lei de Deus.

Neste trecho, notamos a figura de Guaixará, o herói tamoio e outro chefe tamoio na figura representando a figura de Satanás, Aimbirê. Ernesto Cardoso irá discorrer sobre essa relação estreita de Anchieta e a tribo dos tamoios, que aparecem frequentemente em sua literatura:

“Anchieta teve um papel fundamental na pacificação dos tamoios, dos quais ficou prisioneiro voluntário por uma longa temporada, durante a qual escreveu o famoso poema a Nossa Senhora, redigido primeiramente nas areias de Itanhaém, em São Paulo. Incentiva os portugueses a tratarem os índios não como conquistados e escravos, mas a integrá-los, incentivando até o casamento entre os dois povos.”

Segundo Bosi, “nos autos de Anchieta o Mal vem de fora da criatura e pode habitá-la e possuí-la fazendo-a praticar atos-coisas perversos.”

Já em Vieira, o confronto do bem e o mal se dá, em seus sermões, basicamente na figura do indígena e do clero, do conquistado e do conquistador, respectivamente, como verificamos em Sermão da Sexagésima:

“Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. (...)

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. (...) Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? -- No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. (...) Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras.”

Assim como Pe. José de Anchieta, sua obra estava atrelada à vida pública, uma

vez que boa parte dela irá retratar de uma forma mais estreita que aquele jesuíta, alguns aspectos do seu cotidiano, como observa Saraiva e Lopes(1950):

“(...) Mesmo as peças de oratória sacra intervêm abertamente, com frequência, nas questões mais candentes da política brasileira ou metropolitana. É por isso que a eloquência mais persuasiva e o recheio mais humano da sua obra se vão encontrar nos passos mais diretos dos seus sermões, nas cartas mais longas e empenhadas em polêmica e sobretudo em documentos admiráveis como aqueles que se relacionam com as suas grandes campanhas contra o estilo brutal da Inquisição portuguesa e contra a escravização ou arbitrário tratamento dos Ameríndios.”

O papel de Anchieta como apaziguador da Confederação dos Tamoios(1554

1567), corresponde, portanto, ao posicionamento crítico que Vieira exerceu diante da política de Portugal e a Inquisição em relação não só aos indígenas, mas também aos negros e aos judeus, como se verifica na seguinte passagem:

“ Vieira defende os índios da escravização pura e simples pelos colonos, mas os quer aldeados e convertidos, sob o controle dos jesuítas. É sensível à escravização dos negros e sofre com ela, mas não chega a questioná-la, pregando aos escravos antes à resignação aos maus tratos. Com relação aos judeus, opõe-se às perseguições, confissões de bens, prisões e torturas que eles sofriam por parte do Santo Ofício, mas seus interesses humanitários casam-se com interesses práticos: a importância dos capitais judeus para a retomada da expansão comercial portuguesa. (RONCARI, 1996. p. 142-43)

Tais posições lhe renderam acusações pelos inquisidores de herege, porém conseguiu escapar delas.

Ambos os padres jesuítas em estudo utilizaram-se de um recurso bastante comum naquele período que caracterizara a literatura com função catequética e barroca, como podemos verificar a seguir:

“ A alegoria exerce um poder singular de persuasão, não rato terrível pela simplicidade das suas imagens e pela uniformidade da leitura coletiva. Daí o seu uso como ferramenta de aculturação, daí a sua presença desde a primeira hora da nossa vida espiritual, plantada na Contrarreforma que unia as pontas do último Medievo e do primeiro Barroco. (...) Mais do que um simples ‘outro discurso’, como a define o seu étimo grego, a alegoria é o discurso do outro, daquele outro que fala e nos cala, faz temer e obedecer, mesmo quando os fantoches grotescos da sua representação (Diabo ou Megera) nos façam rir.

A alegoria foi o primeiro instrumento de uma arte para massas criada pelos intelectuais orgânicos da aculturação.” (BOSI, 1995. P. 81)

No próprio Sermão da Sexagésima, podemos enxergar a alegoria, principalmente quando se trata do semeador e da semeadura (o padre e a prática do discurso catequista). Já em Anchieta, a “megera Ingratidão” funciona como o Diabo.

Conclusão

Anchieta e Vieira debruçaram toda uma vida não só ao serviço à Deus, mas também se dedicaram à formação de uma Literatura Nacional, ainda que incipiente.

A formação cultural enriquecida de ambos possibilitou que se dedicassem à uma vida literária bastante atribulada e extensa.

Nela, eles irão se aproximar em diversas características, porém o altruísmo talvez seja o maior de todos esses pontos que eles se encontram. Um olhar atento para o outro e para a política da Colônia e da Metrópole.

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